domingo, 31 de outubro de 2010

[Porque não estás aqui?, era a sua pergunta sem destinatário concreto ou conhecido, feita ao vazio e no vazio, na consciência de que nunca ninguém estaria ali, de que ali nunca haveria ninguém para vir ter com ela num tempo menos efémero, que a sua ruptura da noite teria de se fazer como até então, ao sabor das fomes repentinas e de encontros avulsos, de insatisfações permanentes e de aventuras sem compromisso, de fulgores precários e de breves epifanias como as do fogo-de-artifício a enrendarem-na no fio de Ariadne interminável que ela assim desenrolava no seu próprio labirinto e nunca a nada poderia prendê-la e nunca a ninguém haveria de indicar qualquer espécie de caminho que lhe dissesse respeito.

Vasco Graça Moura]

sábado, 30 de outubro de 2010

Os estragos da noite foram vastos,
inversos ao pulsar da primavera:
há tempo em que se luta pelos gastos
rastos da vida e o tempo novo gera

desilusão somente, esse viscoso
correr da insónia como se já água
as lágrimas não fossem e no fosso
há pouco aberto qualquer outra água

de natureza opaca suspendesse
a sua interminável queda; voltas
por fim à noite espessa que já tece
a madrugada com as linhas soltas

da minha vida, versos que transformam
em realidade as sílabas que os formam





Gastão Cruz
Não é fácil resistir a tudo
o que nos roubam.
Tempo, memória, mundo.
Toleramos o insuportável
com insuportáveis venenos.
Até melhor ordem, se houver.


Noutras casas (lembro-me)
éramos mais, bebíamos
apressadamente a juventude.
Mas a vida — chamemos-lhe
assim — separa os que se juntam,
gosta de abismos fáceis.





Manuel de Freitas

Do reincidente cansaço...

Dava-me uma preguiça desmedida
saber que tudo ainda estava por ser descoberto,
Um tédio imensurável
em constatar a falta crônica de mecanismos
para dispor-se a tal busca, e
Uma angústia desesperada
ao notar o tempo veloz anunciando
em suas voltas imparáveis
que estava se esvaindo...
Tentava assimilar a condição de Humanidade,
E toda a sua intrínseca transitoriedade,
Mas só era capaz,
na infinda imaturidade,
De implorar pela constância,
De subsidiar
a degradante ansiedade,
Concomitante ao incessante clamar pela mudança
Fazia-se paradoxo,
Na busca incansável
de substituir o que se foi perdido
Junto com seus sentires,
deveres,
quereres
e saberes ortodoxos.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Jean Beraud

Louis Abel-Truchet (1857-1918)




Auguste Toulmouche, 1829 -1890



[Quanto vale uma possibilidade de Amor?]

Soneto na morte do homem que inventou as rosas de plástico - Peter Meinke

O homem que inventou as rosas de plástico morreu.
Reparem na sua importância:
as suas flores imperecíveis e imaculadas nunca murcham
mas resolutamente velam o seu túmulo através da escuridão.
Ele não compreendeu a beleza nem as flores,
que enredam os nossos corações em redes suaves como o céu
e nos prendem com um fio de horas efémeras:
as flores são belas porque morrem.
A beleza sem o seu lado perecível
torna-se seca e estéril, um palco abandonado
com uma floresta de enganos. Mas a realidade
dá razão à invenção deste homem; ele conhecia a sua época:
uma visão do nosso tempo impiedoso revela-nos
homens artificiais cheirando rosas de plástico.


Tradução de Ricardo Castro Ferreira

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

FUGA - Adolfo Casais Monteiro (1908-1972)

Aos ventos espalhei a cinza dos meus gestos.
Num desprezo de mim, fiz-me poeta,
traí os meus sonhos, enchendo vãos papéis
de traços sem sentido e talvez falsos.
Fui poeta como alguns se suicidam,
como outros partem sem destino certo.
Sonhei-me longe de tudo o que possuo
– longe de mim, longe de quem? –
afastado, sem contas a prestar...
Foi longo o meu engano. Agora vejo
que nunca de mim eu me afastei...

Da desconstrução prévia...

Eu fazia da vida uma aventura imaginária extensa
Deixando com que o tempo se esvaisse em meio a uma complexa irrealidade
Em busca de uma objetividade apreciável e intensa

Mas não ultrapassava um desmedido sentir platônico...

Um viver por entre os destroços de uma alma propensa
Desencaminhada por ofício, por entre os incontáveis labirintos
Ao que proporciona uma realidade nonsense descabida e tensa

domingo, 24 de outubro de 2010

Lucia Sarto


“A solidão às vezes é tão nítida como uma companhia. Vou me adequando, vou me amoldando. Nem sempre é horrível, às vezes é até bem mansinha.”
 
(Caio F.)

Do poeta que despertou meu lisonjeio ao dizer-me intencionalmente...

“Ainda não te conheço
Desejo esse que distante padeço
Um coração aberto e livre
Apto a se encontrar com intimidades novas
Oculta-se em sua vontade mais nobre
Somente quem for digno retira a espada
“não se cansem de arriscar”
Grita em prol de uma vida que passa
“não se cansem de enamorar-se”
Clama em prol de um sentimento inquieto
Então a vida não se resolve em querer qualquer
Queira mesmo
Em prol de uma coragem não cotidiana”


[ps: eu não poderia deixar isso se perder]

Do esperar na poesia...

Tudo que tende a desfazer-se
Refaz-se em poesia
Essa beleza que  foge
Esse romantismo idealizado
Ora dormindo, ora acordado...
[Sempre com poucos recursos reais e mal fundamentados]
Que de tantos elementos acoplados
Ora sucumbe
Ora explode
Essa busca desmedida
...pelas ilusões
Ora abandonadas pelo caminho
Ora substituídas
Ora com fortes requintes de crueldade: perdidas
Esse pensar-se a todo tempo
Essa tentativa de gentificar-se

Ahhh! Faça-se a poesia!

sábado, 23 de outubro de 2010


No ponto onde o silêncio e a solidão
Se cruzam com a noite e com o frio,
Esperei como quem espera em vão,
Tão nítido e preciso era o vazio.


Sophia de Mello Breyner Andresen


Como é possível perder-te
sem nunca te ter achado
nem na polpa dos meu
dedos
se ter formado o afago
sem termos sido a cidade
nem termos rasgado pedras
sem descobrirmos a cor
nem o interior da erva

Como é possível perder-te
sem nunca te ter achado
minha raiva
de ternura
meu ódio de conhecer-te
minha alegria profunda


Maria Tereza Horta

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

James Tissot - Young Lady in a Boat



Torna-se cada vez mais vago
distinguir
memória de imaginação.
Lembro-me de coisas que nunca aconteceram
e recupero cenas que jamais vivi.
Quando ouço coisas que dizem
que fiz, que vi e vivi
então é um meigo espanto.
Está difícil compatibilizar as fotos
com as versões dos fatos
que eu pensei ou fiz.
Acho que inventei
também o meu país.


Affonso Romano de Sant'Anna

Julius LeBlanc Stewart

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Do fado dos contemplativos...

Ser
Ver

Ser a pessoa Vendo
Ver a pessoa Sendo
Ser visto Vendo pela pessoa Sendo

Vimo-nos!
...mas não vivemo-nos

'Havia dias que eram tão áridos e desérticos que ela daria anos de sua vida em troca de uns minutos de graça.'

Clarice...


'Não, havia ela pensado, antes o sofrimento legítimo que o prazer forçado.'

...Sempre Clarice

Do permitir-se... [ou deixar-se sentir]

Deixe que hoje eu usufrua irrestritamente o amargor do meu tormento
Já que o amanhã condena tudo com a claridade branda que encaminha-nos ao esquecimento
Que então, por meio de meus pensamentos
Eu vague em companhia da poeira leve e sem rumo que movimenta-se com o vento

Nada tanto assim..

Minha cara, Hilda...


Ama-me. É tempo ainda. Interroga-me.
E eu te direi que o nosso tempo é agora.
Esplêndida altivez, vasta ventura
Porque é mais vasto o sonho que elabora
Há tanto tempo sua própria tessitura.
Ama-me. Embora eu te pareça
Demasiado intensa. E de aspereza.
E transitória se tu me repensas.

Hilda Hilst

Necessito com urgência!
Tragam-me, concedam-se, proporcionem-me, velozmente!
O anseio possui caráter de sobrevivência:
Uma poltrona macia
Um chocolate quente
Palavras brandas
E um sopro de vida ao meu coração dormente


Essa beleza sempre fugitiva
Escapando insistentemente do alcance das minhas mãos
Mas persistente em fazer-se esplêndida frente aos meus olhos

[Se todos os sentidos fossem providos da mesma liberdade que o visual]

quarta-feira, 20 de outubro de 2010


Nada como uma sinfonia de Beethoven,
um lápis, um papel, um copo, uma tarde.
Beije nos lábios o sonho
e deixe-o passar assim dormente.

Sopre no ouvido o espanto
e deixe-o viver assim dolente.

José Nêumanne Pinto

Perdemos repentinamente
a profundidade dos campos
os enigmas singulares
a claridade que juramos
conservar

mas levamos anos
a esquecer alguém
que apenas nos olhou


José Tolentino Mendonça

De manhã eu sei que o sol vai morrer
depois das dezoito horas.
Mas não me apavoro.
Ele pode morrer antes, se quiser.
Há muito tempo que a minha vida é uma sucessão de expectativas.
Nenhuma delas realizada.
Por isso espero o sol morrer depois das dezoito horas
e ele morre.
Uma tarde, quando o sol era uma estrela cadente,
eu pedi para uma bailarina nascer no lugar da lua.
Mas não nasceu.
Primeiro porque nenhuma bailarina vai nascer no lugar da lua.
Depois porque, se nascesse, não seria uma bailarina.
Mas uma deusa. Eu ri. Não porque fosse impossível
uma deusa nascer no lugar da lua.
Mas porque as deusas não nascem mais.
Elas se afogaram nos Lusíadas e nunca mais emergiram.
Estão lá, no fundo de um poema,
presas às barbas e aos cabelos de Netuno.
Camões que o diga. Ele que teceu
os raios de luar no rosto de Netuno
e deu-lhe o nome de Vasco da Gama.


 
Natalício Barroso
Vai tudo dormir...
Fico sozinho com o universo inteiro.
Não quero ir à janela:
Se eu olhar, que de estrelas!
Que grandes silêncios maiores há no alto!
Que céu anticitadino! —
Antes, recluso,
Num desejo de não ser recluso,
Escuto ansiosamente os ruídos da rua...
Um automóvel — demasiado rápido! —
Os duplos passos em conversa falam-me...
O som de um portão que se fecha brusco dóí-me...
Vai tudo dormir...
Só eu velo, sonolentamente escutando,
Esperando
Qualquer coisa antes que durma...
Qualquer coisa.



Alvaro de Campos

terça-feira, 19 de outubro de 2010

"(...)
e o chão me faltou:
vertigens
Corri para um piso/pouso seguro
a poesia,
meu inutensílio favorito
depois da psicanálise
Só elas me aprumam
me rumam
me fumam
até que só fique a guimba,
o bagaço
até que só reste um traço
como na tela, o eletro de um morto
um porto,
onde a alma ancora
e o corpo é que vai embora"



Ana Guimarães

O que não escrevi, calou-me.
O que não fiz, partiu-me.
O que não senti, doeu-se.
O que não vivi, morreu-se.
O que adiei, adeu-se.

Affonso Romano de Sant'Anna

Do calcular o incalculável...

No fim das contas
sempre o mesmo resultado:
Monólogo

Do tempo pouco apetecedor...

O calor se faz indesejadamente presente
O meu acalanto primaveril é oprimido
por precipitados ares veronescos
A noite se distancia e tarda a chegar...
O sol arde forte e intensamente
A pele arde,
o coração arde,
a vida arde apartando qualquer sutileza
A luz me sufoca e oprime
Sobreviverei a mais um período de império veronil?



'Se a vida é o acaso e talvez, por acaso, seja mesmo; se tudo pode mudar de um minuto pra outro e tudo muda mesmo, que vale, então, tudo? Ou, se, por outro lado, a vida é o acaso e se, por acaso, as coisas não mudam, nem de um minuto pra outro nem de um dia pra outro e à noite, todos estarão lá, nos mesmos postos, como se o sol não tivesse ardido e não tivesse se posto, e eu também passarei por lá, à mesma hora, com a mesma sensação e os mesmos pensamentos, por que, então, me deixar tomar por tanta dor? Entender, pensar, concluir – velho hábito das provas escolares: justifique – e eu justificava tudo o que podia, tudo o que sabia, e até o que não sabia, só para garantir o dez, e agora, o justifique se repetindo, como prova de maturidade: pense, entenda, aceite-se, justifique, “justifique-se”. Justificar a vida, a miséria, a morte, o amor, o desamor…- como?'

Do conto “Por Acaso”, de Nilza Rezende.

Acendo o cigarro para adiar a viagem,
Para adiar todas as viagens.
Para adiar o universo inteiro.
Volta amanhã, realidade!
Basta por hoje, gentes!
Adia-te, presente absoluto!
Mais vale não ser que ser assim.
 
 
Álvaro de Campos


Inflama-me, poente: faz-me perfume e chama;
que o meu coração seja igual a ti, poente!
descobre em mim o eterno, o que arde, o que ama,
...e o vento do esquecimento arraste o que é doente!

Juan Ramón Jiménez

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Do árduo trabalho de [RE] [DES] organização mental...

E depois de tantos despropósitos,
pensa-se seriamente sobre o que não seria:

... sobre o que não devia
e dentro de tudo aquilo que não devia,
o que efetivamente havia?
e entre os haveres,
onde localizava-se os verdadeiros quereres?
e entre os quereres,
havia alguma satisfação nos mesmos,
ou os impulsos propulsores destes eram tão efêmeros e transitórios quanto aquilo que momentaneamente pensa que deve-se?

Se fosse capaz de abstrair por absoluto
e deixar de ser
deixar os quereres
os sentires
os haveres
[e principalmente os deveres]

Se fosse capaz de identificar o que possibilita verdadeiramente sublimar
se pudesse permanecer na superfície
se algo em mim fosse raso
se algo fosse capaz de me manter intacta perante toda essa grosseria que é a minha própria humanidade

meu estado de ser
minha condição de estar

esses condicionamentos todos
e todos aqueles dos quais fui capaz de descondicionar-se e que faz uma falta danada

tudo isso que falta de tudo aquilo que fica e tudo o que se esvai...



Descansa, Coração, e bate em paz!

sábado, 16 de outubro de 2010


[E o nada era quente naquele fim de tarde eternizada pelo planeta Marte.]

C.Lispector.
Entre tamanhas mudanças,
Que coisa terei segura?
Duvidosas esperanças
Tão certa desaventura.

Venham estes desenganos
Do meu longo engano, e vão,
Que já o tempo e os anos
Outros cuidam que me dão.
Já não sou para mudanças,
Mais quero uma dor segura.
Vá crê-las, vãs esperanças,
Quem não sabe o qu'aventura.





Bernardim Ribeiro -S.XVI

Ah, que me metam entre cobertores,
E não me façam mais nada!...
Que a porta do meu quarto fique para sempre fechada,
Que não se abra mesmo para ti se tu lá fores!

Lã vermelha, leito fofo. Tudo bem calafetado...
Nenhum livro, nenhum livro à cabeceira...
Façam apenas com que eu tenha sempre a meu lado
Bolos de ovos e uma garrafa de Madeira.

Não, não estou para mais; não quero mesmo brinquedos.
P'ra quê? Até se mos dessem não saberia brincar...
Que querem fazer de mim com estes enleios e medos?
Não fui feito p'ra festas. Larguem-me! Deixem-me sossegar!...

Noite sempre p'lo meu quarto. As cortinas corridas,
E eu aninhado a dormir, bem quentinho - que amor!...
Sim: ficar sempre na cama, nunca mexer, criar bolor -
P'lo menos era o sossego completo... História! Era a melhor
[das vidas

Se me doem os pés e não sei andar direito,
P'ra que hei-de teimar em ir para as salas, de Lord?
Vamos, que a minha vida por uma vez se acorde.
Com o meu corpo, e se resigne a não ter jeito...

De que me vale sair, se me constipo logo?
E quem posso eu esperar, com a minha delicadeza?
Deixa-te de ilusões, Mário! Bom édredon, bom fogo -
E não penses no resto. É já bastante, com franqueza...

Desistamos. A nenhuma parte a minha ânsia me levará
P'ra que hei-de então andar aos tombos, numa inútil correria?
Tenham dó de mim. C'o a breca! levem-me p'rá enfermaria -
Isto é: p'ra um quarto particular que o meu pai pagará.

Justo. Um quarto de hospital - higiénico, todo branco, moderno
[e tranquilo;
Em Paris, é preferível, por causa da legenda...
De aqui a vinte anos a minha literatura talvez se entenda;
E depois estar maluquinho em Paris, fica bem, tem certo estilo...

Quanto a ti, meu amor, podes vir às quintas-feiras,
Se quiseres ser gentil, perguntar como eu estou.
Agora no meu quarto é que tu não entras, mesmo com as melhores
[maneiras.
Nada a fazer, minha rica. O menino dorme. Tudo o mais acabou.



Mário de Sá Carneiro

Haverá?

" Costuma-se dizer,
dêmos tempo ao tempo,
mas aquilo que sempre nos esquecemos de perguntar
é se haverá tempo para dar"



[Saramago]

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

"Deixa ficar, esse meu pensamento, essa dor, que amanhã talvez eu já não esteja assim..."


Eu deixo, Nana, eu deixo....

(...)

Que vale o pensamento humano,
esforçado e vencido,
na turbulência das horas?

Que valem a conversa apenas murmurada,
a erma ternura, os delicados adeuses?

Que valem as pálpebras da tímida esperança,
orvalhadas de trêmulo sal?

O sangue e a lágrima são pequenos cristais sutis,
no profundo diagrama.

E o homem tão inutilmente pensante e pensado
só tem a tristeza para distingui-lo.

(...)  


Cecília Meireles

Tirar dentro do peito a Emoção,
A lúcida Verdade, o Sentimento!
— E ser, depois de vir do coração,
Um punhado de cinza esparso ao vento! ...
Sonhar um verso de alto pensamento,
E puro como um ritmo de oração!
— E ser, depois de vir do coração,
O pó, o nada, o sonho dum momento...
São assim ocos, rudes, os meus versos:
Rimas perdidas, vendavais dispersos,
Com que iludo os outros, com que minto!
Quem me dera encontrar o verso puro,
O verso altivo e forte, estranho e duro,
Que dissesse, a chorar, isto que sinto!

Florbela Espanca

ó Álvaro...


Encostei-me para trás na cadeira de convés e fechei os olhos,
E o meu destino apareceu-me na alma como um precipício.
A minha vida passada misturou-se com a futura,
E houve no meio um ruído do salão de fumo,
Onde, aos meus ouvidos, acabara a partida de xadrez.
Ah, balouçado
Na sensação das ondas,
Ah, embalado
Na idéia tão confortável de hoje ainda não ser amanhã,
De pelo menos neste momento não ter responsabilidades nenhumas,
De não ter personalidade propriamente, mas sentir-me ali,
Em cima da cadeira como um livro que a sueca ali deixasse.
Ah, afundado
Num torpor da imaginação, sem dúvida um pouco sono,
Irrequieto tão sossegadamente,
Tão análogo de repente à criança que fui outrora
Quando brincava na quinta e não sabia álgebra,
Nem as outras álgebras com x e y's de sentimento.
Ah, todo eu anseio
Por esse momento sem importância nenhuma
Na minha vida,
Ah, todo eu anseio por esse momento, como por outros análogos —
Aqueles momentos em que não tive importância nenhuma,
Aqueles em que compreendi todo o vácuo da existência sem inteligência para o
compreender
E havia luar e mar e a solidão, ó Álvaro.

Alvaro de Campos

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

De quando Hilda Hilst me mostrou a graça apetecedora da cafonice..


Te olhei. E há tanto tempo
Entendo que sou terra.
Há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta
Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento.

[Poesia: 1959-1979 - São Paulo: Quíron; (Brasília): INL, 1980.]

Hilda Hilst

Aflição de ser eu e não ser outra.
Aflição de não ser, amor, aquela
Que muitas filhas te deu, casou donzela
E à noite se prepara e se adivinha
Objeto de amor, atenta e bela.
Aflição de não ser a grande ilha
Que te retém e não te desespera.
(A noite como fera se avizinha.)
Aflição de ser água em meio à terra
E ter a face conturbada e móvel.
E a um só tempo múltipla e imóvel
Não saber se se ausenta ou se te espera.
Aflição de te amar, se te comove.
E sendo água, amor, querer ser terra.



( Roteiro do Silêncio(1959) - Sonetos que não são - I)

“De onde vem essa iluminação que chamam de amor, e logo depois se contorce, se enleia, se turva toda e ofusca e apaga e acende feito um fio de contato defeituoso, sem nunca voltar àquela primeira iluminação?”

Caio, Querido, desencana...

Um toque da solidão, e um dedo
severo me traz à realidade: não depender
dos meus amores, não me enfeitar
demais com sua graça, mas ver
que cada um de nós é um coração sozinho.

Cada um de nós perenemente
é um espelho a se mirar, sabendo
que mesmo se nesse leito frio e branco
um outro amor quer derramar-se em nós,
entre gélido cristal e alma ardente
levanta-se paredes para sempre.

(E para sempre
a amante solidão nos chama e abraça.)

Lya Luft

passa e volta
a cada gole
uma revolta




Paulo Leminski

debruçado num buraco
vendo o vazio
ir e vir




Paulo Leminski

quarta-feira, 13 de outubro de 2010


[...apenas preciso de alguém que me sorria e reponha o mesmo disco sempre a tocar e escute comigo o vento nas janelas e sinta a tristeza que têm os gladíolos murchando em cima da mesa ]


Al Berto
"Uma possibilidade que não consideramos foi que Deus é o irônico mor. Assim como os cientistas fazem experiências em laboratórios com ratos, labirintos e pedaços de queijo colocados atrás da porta certa, Deus pode ter preparado o seu próprio experimento, usando-nos como ratos. Nossa tarefa é localizar a porta atrás da qual está escondida a vida eterna. Perto de uma das possíveis saídas, ouvimos uma música distante, etérea; perto de outra, um cheiro de incenso; raios dourados de luz brilham ao redor de uma terceira. Empurramos cada uma dessas portas, mas nenhuma delas cede. Com uma emergência cada vez maior – pois sabemos que a caixa em que nos encontramos se chama mortalidade -, tentamos fugir. Mas o que não compreendemos é que o objetivo do experimento é não escaparmos. Existem muitas portas falsas, mas nenhuma verdadeira porque não existe vida eterna. O jogo imaginado por Deus, o irônico, é este: incluir desejo de ser imortal numa reles criatura e depois observar as consequências."

Julian Barnes, no livro “Nada a Temer” (Rocco, pg. 194)


Existem pedras nos olhos
mas não as tragas
contigo

meu amor
e meu amigo

Existem pedras nas mãos
mas não as uses
comigo

meu amor
e meu amigo

Existem pedras sedentas
de amor e muito perigo

Não queiras que elas inventem
motivos de meu castigo

Maria Teresa Horta
Tempo, vais para trás ou para diante?
O passado carrega a minha vida
Para trás e eu de mim fiquei distante,
Ou existir é uma continua ida
E eu me persigo nunca me alcançando?

(...)

Andando andando andando andando andando
Tempo, vais para diante ou para trás?

Dante Milano

Versailles, Appartement of Madame Adelaide, Painting of Marie-Clotilde-Xaviere De France, by Francois Hubert Drouais, 2007


Morta a Estrela que um dia, solitária,
Nasceu em céu sem termo.
Morta a Estrela que floriu nos meus olhos.
Morta a Estrela que olhei na noite erma.
Morta a Estrela que dançou diante dos nossos olhos,
A Estrela que descendo acendeu este amor
Morta a Estrela que foi para o meu coração,
Como a neve para os ninhos
Como o pecado para os santos
Como a ausência de Deus para os condenados.

Augusto Frederico Schmidt

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Acordo..
Constato-me
Me assusto
Empalideço com o espanto
Tremo de temor...
Resisto!

        [.... Desisto,
abraço forte o meu cansaço,
e adormeço]

Apelo à Poesia

Por que vieste? — Não chamei por ti!
Era tão natural o que eu pensava,
(Nem triste, nem alegre, de maneira
Que pudesse sentir a tua falta... )
E tu vieste,
Como se fosses necessária!

Poesia! nunca mais venhas assim:
Pé ante pé, covardemente oculta
Nas idéias mais simples,
Nos mais ingênuos sentimentos:
Um sorriso, um olhar, uma lembrança...
— Não sejas como o Amor!

É verdade que vens, como se fosses
Uma parte de mim que vive longe,
Presa ao meu coração
Por um elo invisível;
Mas não regresses mais sem que eu te chame,
— Não sejas como a Saudade!

De súbito, arrebatas-me, através
De zonas espectrais, de ignotos climas;
E, quando desço à vida, já não sei
Onde era o meu lugar...
Poesia! nunca mais venhas assim,
— Não sejas como a Loucura!

Embora a dor me fira, de tal modo
Que só as tuas mãos saibam curar-me,
Ou ninguém, se não tu, possa entender
O meu contentamento,
Não venhas nunca mais sem que eu te chame,
— Não sejas como a Morte!



Carlos Queirós

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Eis a questão...

Nós temos cinco sentidos:
são dois pares e meio de asas.

- Como quereis o equilíbrio?

David Mourão-Ferreira

Se tanto me dói que as coisas passem
É porque cada instante em mim foi vivo
Na luta por um bem definitivo
Em que as coisas de amor se eternizassem.





Sophia de Mello Breyner Andresen

Dava adeus a si mesmo
na ponte sobre o cais.
A cada hora, partia-se
para não voltar mais.

Mauro Mota


"Te acalma, minha loucura!
Veste galochas nos teus cílios tontos e habitados!
Este som de serra de afiar facas
não chegará nem perto do teu canteiro de taquicardías..."



A.C.C.

...e ardor nos olhos fatigados.



"Os outros eu conheci por ocioso acaso.
A ti vim encontrar porque era preciso."



Guimarães Rosa

terça-feira, 5 de outubro de 2010


E toda essa beleza que outrora aturdia
Regurgita a mansidão:
Com o doce olhar que inebria

A inquietude dando trégua
Descaminho reconhecido e em plena conformidade
O desalinho ofoito adormece!

Uma preguiça leve de ser
Um tormento brando por estar
Em mim jaz o infinito!