domingo, 31 de outubro de 2010

[Porque não estás aqui?, era a sua pergunta sem destinatário concreto ou conhecido, feita ao vazio e no vazio, na consciência de que nunca ninguém estaria ali, de que ali nunca haveria ninguém para vir ter com ela num tempo menos efémero, que a sua ruptura da noite teria de se fazer como até então, ao sabor das fomes repentinas e de encontros avulsos, de insatisfações permanentes e de aventuras sem compromisso, de fulgores precários e de breves epifanias como as do fogo-de-artifício a enrendarem-na no fio de Ariadne interminável que ela assim desenrolava no seu próprio labirinto e nunca a nada poderia prendê-la e nunca a ninguém haveria de indicar qualquer espécie de caminho que lhe dissesse respeito.

Vasco Graça Moura]

sábado, 30 de outubro de 2010

Os estragos da noite foram vastos,
inversos ao pulsar da primavera:
há tempo em que se luta pelos gastos
rastos da vida e o tempo novo gera

desilusão somente, esse viscoso
correr da insónia como se já água
as lágrimas não fossem e no fosso
há pouco aberto qualquer outra água

de natureza opaca suspendesse
a sua interminável queda; voltas
por fim à noite espessa que já tece
a madrugada com as linhas soltas

da minha vida, versos que transformam
em realidade as sílabas que os formam





Gastão Cruz
Não é fácil resistir a tudo
o que nos roubam.
Tempo, memória, mundo.
Toleramos o insuportável
com insuportáveis venenos.
Até melhor ordem, se houver.


Noutras casas (lembro-me)
éramos mais, bebíamos
apressadamente a juventude.
Mas a vida — chamemos-lhe
assim — separa os que se juntam,
gosta de abismos fáceis.





Manuel de Freitas

Do reincidente cansaço...

Dava-me uma preguiça desmedida
saber que tudo ainda estava por ser descoberto,
Um tédio imensurável
em constatar a falta crônica de mecanismos
para dispor-se a tal busca, e
Uma angústia desesperada
ao notar o tempo veloz anunciando
em suas voltas imparáveis
que estava se esvaindo...
Tentava assimilar a condição de Humanidade,
E toda a sua intrínseca transitoriedade,
Mas só era capaz,
na infinda imaturidade,
De implorar pela constância,
De subsidiar
a degradante ansiedade,
Concomitante ao incessante clamar pela mudança
Fazia-se paradoxo,
Na busca incansável
de substituir o que se foi perdido
Junto com seus sentires,
deveres,
quereres
e saberes ortodoxos.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Jean Beraud

Louis Abel-Truchet (1857-1918)




Auguste Toulmouche, 1829 -1890



[Quanto vale uma possibilidade de Amor?]

Soneto na morte do homem que inventou as rosas de plástico - Peter Meinke

O homem que inventou as rosas de plástico morreu.
Reparem na sua importância:
as suas flores imperecíveis e imaculadas nunca murcham
mas resolutamente velam o seu túmulo através da escuridão.
Ele não compreendeu a beleza nem as flores,
que enredam os nossos corações em redes suaves como o céu
e nos prendem com um fio de horas efémeras:
as flores são belas porque morrem.
A beleza sem o seu lado perecível
torna-se seca e estéril, um palco abandonado
com uma floresta de enganos. Mas a realidade
dá razão à invenção deste homem; ele conhecia a sua época:
uma visão do nosso tempo impiedoso revela-nos
homens artificiais cheirando rosas de plástico.


Tradução de Ricardo Castro Ferreira

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

FUGA - Adolfo Casais Monteiro (1908-1972)

Aos ventos espalhei a cinza dos meus gestos.
Num desprezo de mim, fiz-me poeta,
traí os meus sonhos, enchendo vãos papéis
de traços sem sentido e talvez falsos.
Fui poeta como alguns se suicidam,
como outros partem sem destino certo.
Sonhei-me longe de tudo o que possuo
– longe de mim, longe de quem? –
afastado, sem contas a prestar...
Foi longo o meu engano. Agora vejo
que nunca de mim eu me afastei...

Da desconstrução prévia...

Eu fazia da vida uma aventura imaginária extensa
Deixando com que o tempo se esvaisse em meio a uma complexa irrealidade
Em busca de uma objetividade apreciável e intensa

Mas não ultrapassava um desmedido sentir platônico...

Um viver por entre os destroços de uma alma propensa
Desencaminhada por ofício, por entre os incontáveis labirintos
Ao que proporciona uma realidade nonsense descabida e tensa

domingo, 24 de outubro de 2010

Lucia Sarto


“A solidão às vezes é tão nítida como uma companhia. Vou me adequando, vou me amoldando. Nem sempre é horrível, às vezes é até bem mansinha.”
 
(Caio F.)

Do poeta que despertou meu lisonjeio ao dizer-me intencionalmente...

“Ainda não te conheço
Desejo esse que distante padeço
Um coração aberto e livre
Apto a se encontrar com intimidades novas
Oculta-se em sua vontade mais nobre
Somente quem for digno retira a espada
“não se cansem de arriscar”
Grita em prol de uma vida que passa
“não se cansem de enamorar-se”
Clama em prol de um sentimento inquieto
Então a vida não se resolve em querer qualquer
Queira mesmo
Em prol de uma coragem não cotidiana”


[ps: eu não poderia deixar isso se perder]

Do esperar na poesia...

Tudo que tende a desfazer-se
Refaz-se em poesia
Essa beleza que  foge
Esse romantismo idealizado
Ora dormindo, ora acordado...
[Sempre com poucos recursos reais e mal fundamentados]
Que de tantos elementos acoplados
Ora sucumbe
Ora explode
Essa busca desmedida
...pelas ilusões
Ora abandonadas pelo caminho
Ora substituídas
Ora com fortes requintes de crueldade: perdidas
Esse pensar-se a todo tempo
Essa tentativa de gentificar-se

Ahhh! Faça-se a poesia!

sábado, 23 de outubro de 2010


No ponto onde o silêncio e a solidão
Se cruzam com a noite e com o frio,
Esperei como quem espera em vão,
Tão nítido e preciso era o vazio.


Sophia de Mello Breyner Andresen


Como é possível perder-te
sem nunca te ter achado
nem na polpa dos meu
dedos
se ter formado o afago
sem termos sido a cidade
nem termos rasgado pedras
sem descobrirmos a cor
nem o interior da erva

Como é possível perder-te
sem nunca te ter achado
minha raiva
de ternura
meu ódio de conhecer-te
minha alegria profunda


Maria Tereza Horta

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

James Tissot - Young Lady in a Boat



Torna-se cada vez mais vago
distinguir
memória de imaginação.
Lembro-me de coisas que nunca aconteceram
e recupero cenas que jamais vivi.
Quando ouço coisas que dizem
que fiz, que vi e vivi
então é um meigo espanto.
Está difícil compatibilizar as fotos
com as versões dos fatos
que eu pensei ou fiz.
Acho que inventei
também o meu país.


Affonso Romano de Sant'Anna

Julius LeBlanc Stewart

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Do fado dos contemplativos...

Ser
Ver

Ser a pessoa Vendo
Ver a pessoa Sendo
Ser visto Vendo pela pessoa Sendo

Vimo-nos!
...mas não vivemo-nos

'Havia dias que eram tão áridos e desérticos que ela daria anos de sua vida em troca de uns minutos de graça.'

Clarice...


'Não, havia ela pensado, antes o sofrimento legítimo que o prazer forçado.'

...Sempre Clarice