sexta-feira, 23 de abril de 2010

Eu sabia que poderia obter êxito de alguma forma, não era possível que SER EU resultaria apenas em experiências catastróficas e situações trágicas.
Toda tentativa, ou efetiva demonstração da minha autenticidade e dos meus anseios particulares, até o presente momento havia apenas me causado uma variedade incontável e inominável de transtornos. Assemelho-me a uma aberração nos meus atos e nas minhas palavras, uma efusividade que se manifesta invariavelmente de forma desproposital, um contínuo de percalços fabricados por mim mesma, sempre com o intuito e evitar a degeneração daquilo que supunha ter de mais caro, e de fato, o que pode haver em mim de mais caro é absolutamente imaterial, e é justamente parte dos elementos que o alheio persiste na tentativa de pisotear, e eu, mantendo o usual padrão de comportamento insano, na busca de defender tais supostas preciosidades, tenho as atitudes mais social e moralmente infames sórdidas e suicidas.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

É assim, amiga. Encontramo-nos
quando calha nos bares de antigamente,
deixando que sobre o tampo azul
das mesas volte a pousar
um baço cemitério de garrafas.
.
Constatamos o pior, os seus aspectos.
Corpos e livros que foram ficando
por ler na voracidade da noite de Lisboa.
De facto, crescemos em alcoolémia,
acordamos tarde, em pânico,
e perdemos os dias e os dentes
com uma espécie de resignação.
Não temos, ao que parece, serventia.
.
Sorrimos um pouco, ao terceiro
gin, como quem renasce para a morte,
seus gestos de ternura ou de exuberância.
Talvez tenhamos calculado mal
o ângulo da queda, esta vitória
sem nobreza dos venenos todos.
.
Mas agora é tarde. Tudo fechou
para nós, para sempre. O amor,
o desejo, até o onanismo da destruição.
Antes de procurares a esmola
do último táxi, fica esta imagem
parada, a desvanecer-se
no frio mais frio da memória:
.
não dois corpos sentados a trocarem
medo, cigarros e palavras póstumas,
mas duas vezes nada, ninguém,
o silêncio da noite destronando
as cadeiras onde por razão nenhuma
nos sentámos. Os anos, amiga, passaram.

Manuel de Freitas

sexta-feira, 16 de abril de 2010

"Que farsa! Toda essa gente sentada com um ar sério; comem. Não, não comem: reparam forças para levar a bom termo a tarefa que lhes foi atribuída. Cada um deles tem o seu pequeno entretenimento pessoal que os impede de se aperceberem que existem; não há nem um que não se julgue indispensável a alguém ou a alguma coisa. Não era o Autodidacta que me dizia outro dia: “ Ninguém era mais qualificado que Nouçapié para empreender esta vasta síntese?" Cada um faz a sua pequena coisa e ninguém é mais qualificado do que ele para a fazer. Ninguém mais qualificado que o caixeiro viajante para usar a pasta Swan. Ninguém mais qualificado do que esse interessante rapaz, para espreitar por debaixo das saias da sua vizinha. E eu, eu estou entre eles, se repararem em mim pensarão que ninguém é mais qualificado que eu para fazer o que faço. Mas eu sei. Não tenho ar de nada, mas sei que existo e eles também existem. Se conhecesse a Arte de persuadir, iria sentar-me perto de um destes senhores de cabelos brancos e explicar-lhe-ia o que é a existência. Ao imaginar a cara que faria, desatei a rir. O Autodidacta olhava-me surpreendido. Gostaria de parar; mas não podia: ri até às lágrimas.
- Está muito feliz, senhor, disse-me o Autodidacta com ar circunspecto.






-É porque penso, disse-lhe a rir, que aqui estamos, iguais ao que somos, a comer e a beber para manter a nossa preciosa existência e, que não há nada, nada, nenhuma razão de existir. "




Jean-Paul Sartre, La nausée.
"O pior par de opostos é o tédio e o terror. Por vezes, a nossa vida é um movimento de pêndulo de um para o outro. O mar não tem uma ruga. Não há nem bafo de vento. As horas são intermináveis. Estamos tão entediados que nos afundamos num estado de apatia próximo do coma., depois o mar fica agitado e as nossas emoções são empurradas para o frenesim. Mas nem mesmo esse dois opostos permanecem distintos. No nosso tédio há elementos de terror: desfazemo-nos em lágrimas; ficamos apavorados; gritamos; magoamo-nos deliberadamente. E no aperto do terror - a pior tempestade - ainda sentimos tédio, uma profunda saturação com tudo aquilo."


Yann Martel, A vida de Pi, Difel, 2008,Lx, pp.238

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Então as boas maneiras, amparadas pela moral judaico-cristão, advertem que não julguemos para que não sejamos julgados, certo?

Certo!? Se aos seus ouvidos isso soa como certo, meus sentimentos por vossa ingenuidade!

Primeiramente, se está se privando da doce e trabalhosa arte de julgar apenas objetivando não ser julgado, tudo indica que há elementos obscuros em seu histórico os quais necessita ocultar. Ou então, caso não se trate da roupagem de boa postura no corpo de calhorda, por que um ser desprovido de pontos a serem esclarecidos temeria o julgamento?
Não seriam esses os exemplos exímios de juízes que a humanidade necessitaria? Não seria o parecer de tais seres que nos proporcionaria uma visão ampla e acertada dos nossos delitos, e que poderia nos aplicar uma sentença verdadeiramente regeneradora?

O fato é que, há sempre vestígios de cretinagem em qualquer percurso, contudo, tal preceito do não julgar, orientado pelas boas maneiras, apenas obstaculizam as possibilidades de análise dos inevitáveis tropeços que invariavelmente se dão em pedras instransponíveis.
Se fosse o caso de tal ausência de julgamento implicar necessariamente na nulidade dos pareceres e sentenças, ok!, estaríamos resolvidos e satisfeitos!
Injurias cometidas, injurias perdoadas, e sem tramites congestionadores de ego, auto-estima e consciência!
Entretanto, nota-se que o que decorre dos não julgamentos, são as não análises dos fatos, as não possibilidades de defesa, acompanhadas dos mais reles pré-conceitos!

Se for assim, na parte que me toca: Julguem! Por obséquio!

segunda-feira, 5 de abril de 2010



A força dos processos imaginativos ultrapassa qualquer possibilidade de racionalidade ou de ancoragem no chão firme e inabalável da objetividade,
os que se deixam enveredar pelas vias obscuras das idealizações fabulosas efetivamente vão longe,

escorregando nas inverdades,
tropeçando na própria verborragia,
por hora trilhando atalhos suicidas,
ou irônica e acidentalmente percorrendo os caminhos mais longos por mero descuido,
mas sempre estando absolutamente distante de qualquer possibilidade de porto.

Incrivelmente, substitui-se a realidade concreta por devaneios inventados,
e ainda sente-se falta do que foi absolutamente desprovido de vinculo com os fatos inquestionáveis que compuseram o cotidiano do qual fizeste parte apenas mentalmente,
e única e exclusivamente na minha mente.

Não deixaste nem uma impressão digital.

sábado, 3 de abril de 2010

Aquela voz fina e aguda adentrava aos meus ouvidos de maneira pouco agradável me proporcionando uma leve, quase imperceptível, mas persistente dor de cabeça. Mas, como as dores de cabeça era uma constante, não seria por esse motivo que eu trocaria de música, ou então, drasticamente, desligaria o som. Não, eu não o faria, afinal, o que poderia me restar além daquelas frases bem formuladas e amaldiçoadamente providas, milagrosamente, de doces rimas primárias?
Sempre resta pouco se formos retirar os elementos causadores de sutis dores de cabeça. E o que resta, pode fazer com que as dores de cabeça sejam substituídas por latentes enfermidades generalizadas!