sábado, 30 de abril de 2011

Com o corpo todo à espera
silencio a vontade
de me aproximar, viver.
Respiro a humidade
do nevoeiro, sempre à espera.



JOÃO BORGES

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Lúcio Cardoso, Diário Completo

"23 de agosto 1954

A impossibilidade de organizar de pronto a minha vida leva-me ao desespero de ontem; sob um dia cinzento e chuvoso, passei horas e horas inteiramente inúteis, distanciado de qualquer sentimento calmo e sensato. A mesma ronda de bares, o mesmo desperdício de energia, o mesmo sono pesado e sem horizontes para acordar hoje com o coração transido de remorso e um grande sentimento de culpa.

Não, a vida assim não é possível. Há muito compreendi isto, e querer continuar esta ilusão de fuga, é nadar em vão num charco de águas lamacentas. O remédio é a paciência, mas de todas as qualidades que me faltam, esta é sem dúvida a de mais alto coeficiente. Tenho de aprender primeiro a saber o que é a paciência e depois a empregá-la com resultados positivos - este é o único meio de levar a cabo o plano que tracei e do qual dependem as únicas coisas que para mim contam nesta vida."

- Cicuta, por favor!

abraçando-a,
era a mim que eu buscava confortar
numa tentativa desesperada
de me conceder o que outrora precisava
e que me foi negado impiedosamente

... mas o vazio seria eterno

as brechas deixadas no peito
as fendas abertas nos sentimentos
a brusca afetação dos sentidos
que se fere ainda mais pela omissão
faz-se irremediável

e a ferida se eterniza
aberta para posteridade

terça-feira, 26 de abril de 2011

Nuno Júdice, in "A Fonte da Vida"

Eu, sabendo que te amo,
e como as coisas do amor são difíceis,
preparo em silêncio a mesa
do jogo, estendo as peças
sobre o tabuleiro, disponho os lugares
necessários para que tudo
comece: as cadeiras
uma em frente da outra, embora saiba
que as mãos não se podem tocar,
e que para além das dificuldades,
hesitações, recuos
ou avanços possíveis, só os olhos
transportam, talvez, uma hipótese
de entendimento.
É então que chegas,
e como se um vento do norte
entrasse por uma janela aberta,
o jogo inteiro voa pelos ares,
o frio enche-te os olhos de lágrimas,
e empurras-me para dentro, onde
o fogo consome o que resta
do nosso quebra-cabeças.

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Se eu lhe dissesse das sombras que cobrem os meus dias,
e lhe mostrasse a obscuridade que inebria os meus sentidos
e me desfaz em lampejos e rompantes de lágrimas gélidas 
por vezes de excesso de lucidez na clareza das poucas, mas ocorrentes epifanias,
e por vezes de medo do caos que me causa a dúvida
essa que eu mesma tenho alimentado no meu exercício de existir 

Como me vês...
agora?
e como me veria...
se houvesse outrora?

Se não eu engasgo

a existência,
 essa tramóia de acaso
 destino
e forças metafísicas
 pouco aceitáveis como consolo
por vezes nos transmite o embuste
da delicadeza confortante das efemeridades
e invariávelmente,
 fora os pequenos intervalos das agradabilidades afáveis
nos arde a pele e a alma
em meio aos espatifos
dos pedaços que se dissapam
com os inevitáveis tombos
que nos fazem em retalhos humanos
a ser reconstruidos em busca de novos confortos

domingo, 24 de abril de 2011


"A livraria Bertrand do Chiado, em Lisboa, está de portas abertas desde 1732 e é o estabelecimento livreiro mais antigo em todo o Mundo. Ao longo dos anos, a livraria Bertrand tem sido retiro de escritores e refúgio de revolucionários. As histórias são muitas, nomeadamente as que envolvem conspiradores republicanos. José Fontana (que se suicidou no interior da loja), Antero de Quental e Aquilino Ribeiro são alguns dos “fantasmas” cujas sombras permanecem vivas no interior da Bertrand." 



( Disponível em http://ebooksgratis.com.br/informacao-e-cultura/curiosidades/curiosidades-livraria-em-lisboa-e-a-mais-antiga-do-mundo-desde-1732/, acesso em 24/04/2011)

sexta-feira, 22 de abril de 2011

E o pior é que chamamos liberdade
a um tapete que, rolante, já não ouve
a opinião dos nossos pés; que nos leva
para onde e anuímos, alheados,
aos mecânicos desígnios do terror.

Respiramos cadeados, consumimos injustiça,
damos duas várias voltas ao risonho torniquete
que nos serve de chapéu; trocamos a cabeça
por um prato de aspirinas. Os clássicos da vida
sem tristeza nem remorso
(Cinderela,

Varadero, off-shore) iluminam o cenário
em que dormimos, inocentes como balas
e nem sei como não somos mais felizes.
As rémoras, os ogres, os deuses mais bonitos,
velam nossa carne como grifos educados.

O tratado das sementes, o saber do lenhador,
queremos lá saber de quem é pobre como nós.
Confiados ao acaso, disputamos amuletos,
reforçamos sob os pés a solidez do desacerto,
colocamos outra pedra no sapato.

Para o centro do inferno dirigimos
este filho, o filho deste carro,
cativados pelo direito conquistado
de entregar os nossos dias, como rezes,
ao cutelo de despachos infiéis.

Neste cerco, viver é uma questão
de prorrogar o desalento, de iludir
o infortúnio: cerramos uma porta suicida,
desatamos a gravata, ficamos satisfeitos
quando o gelo, na bebida, é de boa qualidade.

Se olhamos para o chão desaparece
o horizonte; se olhamos para o céu
ficamos sós. Não percebo como rimos
quando pedem que posemos para a foto
de família. Alguém nos enganamos.

Confundidos pelo surto de mentira,
leiloados pela última hipnose,
enxertados no pedúnculo da morte,
semi-envergonhados, de sorriso padecido,
dizei-me se este rosto de cartão amarrotado,
se esta alma como um campo pedregoso,
se estes pés adaptados ao espinho,
se isto que nós vemos é um homem.

José Manuel Silva

Casimiro de Brito

Tu
que não cabes em casa nenhuma
tu
que vais leve como as nuvens
no outono
habitas em mim e ouço
o teu perfume a tua
respiração
nas rosas que se abrem
e dissipam
no meu poema.

Virginia Kent and Peggy Leaf - Informal Daywear by Lelong - 1934

mas gosto da noite e do riso de cinzas. gosto do
deserto, e do acaso da vida. gosto dos enganos, da sorte e
dos encontros inesperados.
pernoito quase sempre no lado sagrado do meu coração,
ou onde o medo tem a precariedade doutro corpo.
a dor de todas as ruas vazias.

(...)

os poemas adormeceram no desassossego da idade.
fulguram na perturbação de um tempo cada dia mais
curto. e, por vezes, ouço-os no transe da noite. assolam-me
as imagens, rasgam-me as metáforas insidiosas, porcas. ..e
nada escrevo.
o regresso à escrita terminou. a vida toda fodida - e
a alma esburacada por uma agonia tamanho deste mar.

a dor de todas as ruas vazias.

Al Berto
A morte e a vida morrem
e sob a sua eternidade fica
só a memória do esquecimento de tudo;
também o silêncio de aquele que fala se calará.

Quem fala de estas
coisas e de falar de elas
foge para o puro esquecimento
fora da cabeça e de si.

O que existe falta
sob a eternidade;
saber é esquecer, e
esta é a sabedoria e o esquecimento.


Manuel António Pina

O Mundo Está Prestes a Rebentar

Não olhes.
O mundo está prestes a rebentar.
Não olhes.
O mundo está prestes a despejar a sua luz
E a lançar-nos no abismo das suas trevas,
Aquele lugar negro, gordo e sem ar
Onde nós iremos matar ou morrer ou dançar ou chorar
Ou gritar ou gemer ou chiar que nem ratos
A ver se conseguimos de novo um posto de partida.


Harold Pinter

Das irrefutáveis lições de sabedoria... [aplicável mansamente?]

Aprendi com as primaveras a me deixar cortar...
e voltar sempre inteira e renovada!

 
 
 
Cecília Meirelles

terça-feira, 12 de abril de 2011

sexta-feira, 8 de abril de 2011

aos poucos
rasgo o espelho da memória.
redesenhando novos traços
esculpidos em voo livre
sob a estrela que roubei
num olhar moribundo.

aos poucos
enterro o coração de papel.
esmagando na poeira do vento
as palavras negadas.

Ana Barros

terça-feira, 5 de abril de 2011