quinta-feira, 30 de setembro de 2010


Ó mulher! Como és fraca e como és forte!
Como sabes ser doce e desgraçada!
Como sabes fingir quando em teu peito
A tua alma se estorce amargurada!
Quantas morrem saudosas duma imagem
Adorada que amaram doidamente!
Quantas e quantas almas endoidecem
Enquanto a boca ri alegremente!
Quanta paixão e amor às vezes têm
Sem nunca o confessarem a ninguém
Doces almas de dor e sofrimento!
Paixão que faria a felicidade
Dum rei; amor de sonho e de saudade,
Que se esvai e que foge num lamento!



Florbela Espanca

(E para sempre
a amante solidão nos chama e abraça.)



Lya Luft




Mas tudo passou tão depressa
Não consigo dormir agora.
Nunca o silêncio gritou tanto
Nas ruas da minha memória.
Como agarrar líquido o tempo
Que pelos vãos dos dedos flui?
Meu coração é hoje um pássaro
Pousado na árvore que eu fui.




Cassiano Ricardo

Insânia

No mundo vago das idealidades
Afundei minha louca fantasia;
Cedo atraiu-me a auréola fulgidia
Da refulgência antiga das idades.


Mas ao esplendor das velhas majestades
Vacila a mente e o seu ardor esfria;
Busquei então na nebulosa fria
Das ilusões, sonhar novas idades.


Que desespero insano me apavora!
Aqui, chora um ocaso sepultado;
Ali, pompeia a luz da branca aurora.

E eu tremo entre um mistério escuro:
- Quero partir em busca do Passado,
- Quero correr em busca do Futuro.





Augusto dos Anjos

à ternura pouca
me vou acostumando
enquanto me adio
servente de danos e enganos

vou perdendo morada
na súbita lentidão
de um destino
que me vai sendo escasso

conheço a minha morte
seu lugar esquivo
seu acontecer disperso

agora
que mais
me poderei vencer?



Mia Couto

Inútil definir este animal aflito.
Nem palavras,
nem cinzéis,
nem acordes,
nem pincéis
são gargantas deste grito.
Universo em expansão.
Pincelada de zarcão
desde mais infinito a menos infinito.



António Gedeão

Dia feito de tempo e de vazio:
desabitas-me, apagas
meu nome e o que sou,
enchendo-me de ti: luz, nada.


E flutuo, já sem mim, pura existência.



Octavio Paz

quarta-feira, 29 de setembro de 2010


Preciso de uma palavra,
uma só palavra rogo,
como quem pede uma esmola.
Em florestas de palavras
os calados pés caminham,
as caladas mãos perquirem,
os olhos indagam firmes.
Em que parábola cruel,
em que ciência, em que planeta,
em que fronte tão hermética,
em que silêncio fechada
estará viajando agora
- mariposa de ouro azul -
a palavra que desejo?
Lâmina sexo cristal
fulcro pântano convés
voraginoso fluvial
Antígona circunflexa
catastrófico crepúsculo
ênula ventre rosal
sibila farol maré
desesperadoramente
nenhuma será nem é
aquela do meu anseio.
Como será, quando vier,
a palavra entrepensada,
necessária e suficiente
para a minha construção
de lápis, papel e vento?
Dura, espessa, veludosa
ou fina, límpida, nítida?
Asa tênue de libélula
ou maciça e carregada
de algum plúmbeo conteúdo?
Distante, insone e cativo,
debaixo da chuva abstrata,
eu me planto decisivo
no tráfego confluente,
aéreo, terrestre, marítimo,
e espero que desembarque,
triste e casta como um peixe
ou ardendo em carne e verbo,
e pouse na minha mão
a áurea moeda dissilábica,
a noiva desconhecida,
a coroa imperecível:
a palavra que não tenho.

Abgar Renault

Mas livrai-me de minha própria imaturidade, Amém!

Que me seja dado forças para conviver com as pessoas pequenas
Que me seja protegida a alma das pessoas levianas
Que me seja mantida a calma em meio a toda essa empolgação frivola
Que meus anticorpos resistam a tantos ataques virais
Guardai-me no universo paralelo,
Mantendo intacta minha redoma:
Totalmente leve, e livre, por absoluto...
De toda essa dita normalidade indigesta
De toda essa vivência torpe e falsificada
De toda essa dissimulação explícita
De todos esses atores iniciantes
Que não foram capazes de trajar convincentemente suas fantasias
E de alinhar suas máscaras ao próprio o rosto
De toda mágoa que não souberam bem canalizar
De toda essa hostilidade fundamentada em corriqueirisses
superestimadas por essas pessoas pequenas...


PACIÊNCIA, MENINA, PACIÊNCIA...

Jesús Lima


Tempo de solidão e de incerteza
Tempo de medo e tempo de traição
Tempo de injustiça e de vileza
Tempo de negação


Tempo de covardia e tempo de ira
Tempo de mascarada e de mentira
Tempo que mata quem o denuncia
Tempo de escravidão


Tempo dos coniventes sem cadastro
Tempo de silêncio e de mordaça
Tempo onde o sangue não tem rasto
Tempo de ameaça



Sophia de Mello Breyner

Não quero saber como as coisas se comportam.
Quero inventar comportamento para as coisas.
Li uma vez que a tarefa mais lídima da poesia é a
de equivocar o sentido das palavras
Não havendo nenhum descomportamento nisso
senão que alguma experiência linguística.
Noto que às vezes sou desvirtuado a pássaros, que
sou desvirtuado em árvores, que sou desvirtuado
para pedras.
Mas que essa mudança de comportamento gental
para animal ou pedral
É apenas um descomportamento semântico.
Se eu digo que grota é uma palavra apropriada para
ventar nas pedras,
Apenas faço o desvio da finalidade da grota que
não é a de ventar nas pedras.
Se digo que os passarinhos faziam paisagens na
minha infância,
É apenas um desvio das tarefas dos passarinhos que
não é a de fazer paisagens.


Manoel de Barros

Dai-me um dia branco, um mar de beladona
Um movimento
Inteiro, unido, adormecido
Como um só momento.

Eu quero caminhar como quem dorme
Entre países sem nome que flutuam.
Imagens tão mudas
Que ao olhá-las me pareça
Que fechei os olhos.

Um dia em que se possa não saber.



Sophia de Mello Breyner

segunda-feira, 27 de setembro de 2010



"Os meus olhos perambulam
No seu rosto
Te namoram
Que brincadeira
Doce brincadeira

Os seus olhos perambulam
No meu rosto
Curto muito
Que brincadeira
Doce brincadeira"

domingo, 26 de setembro de 2010

Calma, Alma minha, calminha, você tem muito que aprender...

"Queria descobrir
Em 24h tudo que você adora
Tudo que te faz sorrir
E num fim de semana
Tudo que você mais ama
E no prazo de um mês
Tudo que você já fez
É tanta coisa que eu não sei"

(...)

sábado, 25 de setembro de 2010

Carta de Fernando Sabino para Clarice Lispector:

[Carta de Andréia Bissolati para uma Menina Cretinamente Doce ou Docemente Cretina...]

[...]apenas desejo intensamente que você não avance demais para não cair do outro lado. Você tem de ser equilibrista até o fim da vida. E suando muito, apertando o cabo da sombrinha aberta, com medo de cair, olhando a distância do arame já percorrido e do arame a percorrer — e sempre tendo de exibir para o público um falso sorriso de calma e facilidade. Tem de fazer isso todos os dias, para os outros como se na vida não tivesse feito outra coisa, para você como se fosse sempre a primeira vez, e a mais perigosa. Do contrário seu número será um fracasso.'

Sempre subindo a ladeira do nada,
Topar em pedras que nada revelam.
Levar às costas o fardo do ser
E ter certeza que não vai ser pago.

Sentir prazeres, dores, sentir medo,
Nada entender, querer saber tudo.
Cantar com voz bonita prá cachorro,
Não ver "PERIGO" e afundar no caos.

Fumar, beber, amar, dormir sem sono,
Observar as horas impiedosas
Que passam carregando um bom pedaço
da vida, sem dar satisfações.

Amar o amargo e sonhar com doçuras
Saber que retornar não é possível
Sentir que um dia vai sentir saudades
Da ladeira, do fardo, das pedradas.

Por fim, de um só salto,
Transpor de vez o paredão.


[Torquato]

Pois é, Buk...



"Os melhores geralmente morrem
por suas próprias mãos
apenas para escapar
e aqueles que ficam pra trás
nunca conseguem compreender
por que alguém iria querer escapar deles..."

sexta-feira, 24 de setembro de 2010



Passa o tempo
E a vida passa
E eu
De alma ingênua
Acredito
No sonho , doce infinito
Plenitude
Enlevo e graça






Maria Bethânia
Estou sempre dando adeus:
também ao desencontro e ao
desencanto.
Estou sempre me despedindo
do ponto de partida que me lança de si,
do ponto de chegada que nunca é
aqui.
Estou sempre dando adeus:
(...)
para reencontrar em outra esquina
de adeuses.
Estarei sempre de partida,
até o momento de sermos deuses:
quando me fizeres dar adeus á solidão
e à sombra.
.


Lya Luft

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

"Quanto mais ando a procura de gente mais me encontro sozinho no vago...
e eu nem sabia mais o montante que queria, nem aonde eu extenso ia...
mas talvez o que sentia, Solidão.”


[Guimarães Rosa]
[O que sobrou dessa menina depois de tanto ter sido?
O que restou de suas emoções pulsantes?



O que tem subsiado seus lamentos que não cessam?
O que são esses elementos que a fazem fria rude e provocante?



O que ficou escondido por esses olhos fundos?
Uma mágoa sufocada e um coração partido?



Poesias murchas, ego desinflado pelo que teve de ter sido forçosamente esquecido?]
Mas e se as palavras me bastassem?
E se eu pudesse me livrar de toda essa materialidade desgastante?
E se meu pensar fizesse riso pleno, satisfeito e constante?
E se eu me rendesse às rimas primárias?
E se me deitasse no aconchego macio das rimas primárias e me contentasse com toda a delicadeza simplória e melódica que existe na mesma?
E se meu coração se acostumasse com esse ritmo incontrolável?
E se esse nó não desatável que interrompe o caminho da minha garganta não mais fosse sentido, ou de tão costumeiro não fizesse mais sentido?
E se minha respiração deixasse de ser tão medrozamente ofegante?

Se aquiete, Coração!

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Estou toda doída da vida
a vida tem me doído até as entranhas
Imperceptivelmente me tornei reluzentemente opaca
Irremediavelmente confusa e estranha

Dos que me entendiam
Hoje os entedio
Dos que me amaram
Hoje já não os amarro...

Sozinha, Querida, Solidamente sozinha
Liquidamente solitária escorrendo pelos becos da vida
Essa que me dói
Essa que me chega hostil rude e cortante

Mas eu estou bem
Eu vou ficar bem...
obviamente,
na pior das hipóteses eu morro,
ou fico com esse ar de algo sempre por terminar,
essa sensação de que a qualquer momento o meu coração vai saltar pela boca profanadora de tudo e todos... a qualquer momento meu coração se faz pedacinhos imperceptíveis até para essa minha dor persistente e incansável...

Dor de vida
Dor de ausência de vida
Dor de ânsia de vida
Dor de medo de partida...

[a dor doída da ida...

... para onde?]


Andréia, 21 de setembro de 2010

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

...Resta esse constante esforço para caminhar dentro do labirinto
Esse eterno levantar-se depois de cada queda
Essa busca de equilíbrio no fio da navalha
Essa terrível coragem diante do grande medo, e esse medo
Infantil de ter pequenas coragens."




(Vinicius de Moraes in O Haver)


"Sou a mulher mais cansada do mundo. Fico cansada assim que me levanto. A vida requer um esforço de que me sinto incapaz. Por favor passa-me esse livro pesado. Preciso de pôr qualquer coisa pesada sobre a cabeça. Necessito constantemente de pôr os meus pés sob almofadas para que consiga continuar na Terra. "




(Anais Nin - A Casa Do Incesto)

domingo, 19 de setembro de 2010

Se não sais de ti, não chegas a saber quem és.
(...) que é necessário sair da ilha para ver a ilha, que não nos vemos se não saímos de nós próprios.


[ só cuide para que não queiram exorcizá-la, Menina!]

[Saramago]



Que murmúrio de vento, que dourados cantos de ave pousada em altos ramos dirão, em som, as coisas que, calados, no silêncio dos olhos confessamos?



[Saramago]

sábado, 18 de setembro de 2010

De seguro,
Posso apenas dizer que havia um muro
E que foi contra ele que arremeti
A vida inteira.
Não. Nunca o contornei.
Nunca tentei
Ultrapassá-lo de qualquer maneira.
A honra era lutar
Sem esperança de vencer.
E lutei ferozmente noite e dia,
Apesar de saber
Que quanto mais lutava mais perdia
E mais funda sentia
A dor de me perder.

Miguel Torga

(1907-1995)


(...) permite que eu deseje ser só — ou teu somente — num lugar do mundo onde os gritos não tenham eco, onde a inveja não ameace, onde as coisas do amor aconteçam sem testemunhas. Livrem-me da pressa, das datas, dos salários e das dívidas e a todos serei agradecido, num verso submisso. Livrem-me de mim, de uma certa insaciabilidade que apavora e de todos serei escravo numa humilde canção. Permite que eu só queira, agora, esse canto de sono e preguiça, onde não necessite dos atletas, onde o céu possa ser céu sem urubus e aviões, onde as árvores sejam desnecessárias, porque os pássaros se sintam bem em cantar e dormir em nossos ombros.

31/05/1963

Texto extraído do livro "Com Vocês, Antônio Maria", Editora Paz e Terra - Rio de Janeiro, 1964, pág. 225.


Se não der certo,
meu coração é esperto.
Não vai parar de bater pra te esquecer, meu bem.

cazuza

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

- É o que ele escolheu.
- O que ele escolheu ou o que lhe foi deixado…
- O que você disse?
- Estou dizendo, é o que ele escolheu ou o que lhe foi deixado?
- Não, é o que ele escolheu. Ele escolheu isto. Para se isolar, desaparecer e viver a vida que viveu.
- Bem, talvez ele não pôde encontrar o caminho… não sei… Às vezes, você não pode decidir, é só o que lhe sobra.

Do filme Lluvia (2008), de Alma para Roberto.
Às vezes vêm de muito longe:
de fatigadas viagens,
de mortes prematuras,
de excessivas solidões.
Mas vêm.
E trazem a inicial pureza das fontes.
E a lâmina do silêncio.
E a desordem da noite.
E a luz extenuada do olhar.
Tão cúmplices, as palavras.

Graça Pires

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

- É que há momentos de respirar poesias, e momentos de inspirá-las, se não a gente sufoca....

Ainda que sendo tarde e em vão,
perguntarei por que motivo
tudo quanto eu quis de mais vivo
tinha por cima escrito "Não".

 
 
 
Cecília Meireles
Este era o acaso a que serviram minhas lágrimas?
Esta era a doce escravidão da minha vida?
Isto era toda a tua glória - este resíduo?

E à morte roubo minha alma,apenas?



Cecilia Meireles

Nem palavras de adeus, nem gestos de abandono.
Nenhuma explicação. Silêncio. Morte. Ausência.
O ópio do luar banhando os meus olhos de sono...
Benevolência. Inconsequência. Inexistência.

Paz dos que não têm fé, nem carinho, nem dono...
Todo o perdão divino e a divina clemência!
Oiro que cai dos céus pelos frios do outono...
Esmola que faz bem... - nem gestos, nem violência...

Nem palavras.Nem choro. A mudez. Pensativas
abstrações. Vão temor de saber. Lento, lento
volver de olhos, em torno, augurais e espectrais...

Todas as negações. Todas as negativas.
Ódio? Amor? Ele? Tu? Sim? Não? Riso? Lamento?
- Nenhum mais. Ninguém mais. Nada mais. Nunca mais...



Cecília Meireles

quarta-feira, 15 de setembro de 2010


[Dou-me à veleidade de sonhar vida nova. De, como já disse, querer refazer o meu mundo, abrir outros horizontes, enquanto de fato me sinto morrer aos poucos. Não tanto do corpo, mas da alma, com a impressão de que esta vai perdendo o que eu julguei impossível de perder e se aproxima dum temeroso vazio.]



J. Rentes de Carvalho



segunda-feira, 13 de setembro de 2010


Provoca uma certa melancolia,
uma tristeza decadente – seguramente literária—
como certas canções de entre guerras
ou páginas soltas de Drieu La Rochelle,
ver um homem só, afastado e distante,
no balcão de um bar com uma decoração cosmopolita.
Nessa idade incerta, tão incerta como a luz ambiente,
em que já não é jovem e contudo ainda não é velho
mas traz nos seus olhos a marca da sua derrota
quando com um gesto estudado acende um cigarro.
Muitos copos e muitas camas,
uma indubitável barriga mal dissimulada pela camisa,
o tremor, não muito visível, da sua mão segurando um copo,
fazem parte do naufrágio, da ressaca da vida.
Um homem que espera sabe deus o quê
e, inspirando o fumo, olha com declarada indiferença
as garrafas à sua frente, os rostos reflectidos por um espelho,
tudo com a particular irrealidade de uma fotografia.
E causa, ainda mais triste, um fundo suspiro reprimido,
ver no fundo desse copo – mágico caleidoscópio –
que esse homem és irremediavelmente tu.
Não resta então senão um sorriso céptico e distante
– aprendido muito cedo e útil anos mais tarde –,
e acabares a bebida de um só trago,
pagares a conta enquanto chamas um táxi
e dizeres-te adeus com palavras banais.



Juan Luis Panero

sábado, 11 de setembro de 2010



Permite que agora emudeça:
que me conforme em ser sozinha.
Há uma doce luz no silêncio,
e a dor é de origem divina.

 
Permite que eu volte o meu rosto
para um céu maior que este mundo,
e aprenda a ser dócil no sonho
como as estrelas no seu rumo.



Cecília Meireles

Quanto terror latente
nesse mar gelado
que desde sempre
levamos na alma.


António Castañeda


Eu sei que o meu desespero não interessa a ninguém.
Cada um tem o seu, pessoal e intransmissível:
com ele se entretém
e se julga intangível.

Eu sei que a Humanidade é mais gente do que eu,
sei que o Mundo é maior do que o bairro onde habito,
que o respirar de um só, mesmo que seja o meu,
não pesa num total que tende para infinito.

Eu sei que as dimensões impiedosos da Vida
ignoram todo o homem, dissolvem-no, e, contudo,
nesta insignificância, gratuita e desvalida,
Universo sou eu, com nebulosas e tudo.



António Gedeão


E fico, pensativa, olhando o vago...
Toma a brandura plácida dum lago
O meu rosto de monja de marfim...
E as lágrimas que choro, branca e calma,
Ninguém as vê brotar dentro da alma!
Ninguém as vê cair dentro de mim!




Florbela Espanca

sexta-feira, 10 de setembro de 2010


Porque é sempre de nós que nos separamos quando deixamos alguém,
É sempre de nós que partimos quando deixamos a costa,
A casa, o campo, a margem, a gare, ou o cais.
Tudo que vimos é nós, vivemos só nós o mundo.
Não temos senão nós dentro e fora de nós,
Não temos nada, não temos nada, não temos nada...
Só a sombra fugaz no chão da caverna no depósito de almas,
Só a brisa breve feita pela passagem da consciência,
Só a gota de água na folha seca, inútil orvalho,
Só a roda multicolor girando branca aos olhos
Do fantasma inteiro que somos,
Lágrima das pálpebras descidas
Do olhar velado divino.

Álvaro de Campos


 Deixe-me estar aqui, nesta cadeira,
Até virem meter-me no caixão.
Nasci pra mandarim de condição,
Mas falta-me o sossego, o chá e a esteira.

Ah que bom que era ir daqui de caída
Prà cova por um alçapão de estouro!
A vida sabe-me a tabaco louro.
Nunca fiz mais do que fumar a vida.

E afinal o que quero é fé, é calma,
E não ter estas sensações confusas.
Deus que acabe com isto! Abra as eclusas —
E basta de comédias na minh’alma!


 
Álvaro de Campos

Decerto não serás feliz.
Algum oráculo, estranho
e de longo tempo, anuncia.
Imponderável é o teu destino.
Mesmo que o amor inunde o pátio
das tardes e as tardes inundem as margens
dos dias e os dias invadam o delta
das noites, decerto não serás feliz.
Os elos, mesmo os de sangue, ruirão.
O tempo, com sua agulha silente, tecerá
a fábula febril da dor, os atrozes
elementos de tua insaciável agonia.
E nada restará a ti, ao animal
que és e foste nas horas extremas
dessa ancestral melancolia.
 
 
Hildeberto Barbosa Filho
Inglória é a vida, e inglório o conhecê-la.
Quantos, se pensam, não se reconhecem
Os que se conheceram!
A cada hora se muda não só a hora
Mas o que se crê nela, e a vida passa
Entre viver e ser.



Ricardo Reis


Tênue passar das horas sem proveito,
Leve corrrer dos dias sem ação,
Como a quem com saúde jaz no leito
Ou quem sempre se atrasa sem razão.

Vadio sem andar, meu ser inerte
Contempla-me, que esqueço de querer,
E a tarde exterior seu tédio verte
Sobre quem nada fez e nada quer.

Inútil vida, posta a um canto e ida
Sem que alguém nela fosse, nau sem mar,
Obra solenemente por ser lida,
Ah, deixem-se sonhar sem esperar.



Fernando Pessoa

Não quero



Não quero recordar nem conhecer-me.
Somos demais se olhamos em quem somos.
Ignorar que vivemos
Cumpre bastante a vida.

Tanto quanto vivemos, vive a hora
Em que vivemos, igualmente morta
Quando passa conosco,
Que passamos com ela.

Se sabê-lo não serve de sabê-lo
(Pois sem poder que vale conhecermos?)
Melhor vida é a vida
Que dura sem medir-se.



Ricardo Reis


Fecha os olhos devagar
Vem e chora comigo
O tempo que o amor não nos deu
Toda a infinita espera
O que não foi só teu e meu
Nessa derradeira primavera



Vinicius de Moraes

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Por que fazer o menor gesto,
se nada sei, se nada  [TUDO] sofro,
se estou perdida em mim, tão perdida
como o som da voz no teu sopro.

Cecília Meireles
"O que tanto zelamos
na fileira dos dias,
o que tanto brigamos
para guardar, de repente
não presta mais: jornais, retratos,
poemas, posteridade.
Minha bagagem
é a roupa do corpo.
...

Eu fui o que não sou.
Depois que inventaram o inconsciente,
a verdade fica sempre para depois."
 
(Poemas do livro Cinco Marias)






"(...) O nojo e o frio do teu silêncio
apaga a lógica poética
em que me fundo.
A bordo do teu nome vazio
escrevo-te estes versos
com a azul absurdo deste dia."



Armando Artur (poeta moçambicano)
[Mas nem sempre é necessário tornar-se forte.
Temos que respirar nossas fraquezas.]


...Clarice Lispector

quarta-feira, 8 de setembro de 2010


"Desmascaramos a farsa para continuarmos a existir no meio dela. De que nos tem servido essa lucidez senão para chamar barra cada vez mais pesada?"

"por dentro, inútil
medo em branco
examinando possibilidades
as mais diversas
de escape que não há"



Existe sempre alguma coisa ausente
Tenho a boca afiada de punhais
não choro
olho os faróis com duros olhos
ardidos de quem tem febres
mas não sangro
as mãos vazias deixam passar o vento
lavando os dedos que não se crispam
não há palavras, nem mesmo estas
o único sentido de estar aqui
é apenas estar secamente aqui
cravado como um prego
em plena carne viva da tarde.



Caio... julho de 1980
Andréia... setembro de 2010

Alento

Quando nada mais houver
eu me erguerei cantando,
saudando a vida
com meu corpo de cavalo jovem.
E numa louca corrida
entregarei meu ser ao ser do Tempo
e a minha voz à doce voz do vento.
Despojado do que já não há
solto no vazio do que ainda não veio,
minha boca cantará
cantos de alívio pelo que se foi,
cantos de espera pelo que há de vir.


( Extraído do livro Caio Fernando Abreu- Caio 3D, O Essencial da Década de 1970, p.144)

"(...) Parece incrível ainda estar vivo quando já não se acredita em mais nada. Olhar, quando já não se acredita no que se vê. E não sentir dor nem medo porque atingiram seu limite. E não ter nada além deste amplo vazio que poderei preencher como quiser ou deixá-lo assim, sozinho em si mesmo, completo, total."

sábado, 4 de setembro de 2010

Não faças de ti

Um sonho a realizar.

Vai.

Sem caminho marcado.

Tu és o de todos os caminhos.

Sê apenas uma presença.

Invisível presença silenciosa.

Todas as coisas esperam a luz,

Sem dizerem que a esperam.

Sem saberem que existe.

Todas as coisas esperarão por ti,

Sem te falarem.

Sem lhes falares.

Sê o que renuncia

Altamente:

Sem tristeza da tua renúncia!

Sem orgulho da tua renúncia!

Abre as tuas mãos sobre o infinito.

E não deixes ficar de ti

Nem esse último gesto!

O que tu viste amargo,

Doloroso,

Difícil,

O que tu viste inútil

Foi o que viram os teus olhos

Humanos,

Esquecidos...

Enganados...

No momento da tua renúncia

Estende sobre a vida

Os teus olhos

E tu verás o que vias:

Mas tu verás melhor...

... E tudo que era efêmero

se desfez.

E ficaste só tu, que é eterno.





Cecília Meireles

(1901-1964)